Para a minha mãe, 11.01.18
Alguma coisa de eternidade
deve subsistir no teu rosto
que se volta para mim, agora,
lenço verde-azeitona, vestido de cornucópias,
e a forma das mãos
amparando a Vanda, tão pequenina,
parece debruçar-se sobre abismos
que eram dali, do muro
onde a sentaste, onde a sentas,
até à ausência adivinhada do chão.
Abismos onde ela não estava,
nem de soslaio, pois a infância
é o momento em que se atemorizam
escuros de olho vítreo. Fogem os escuros,
animais em humilhação.
Assim te vejo e assim estremeço
algures nas Áfricas onde nascemos
e onde estaremos sempre,
tu, eu, o pai, os irmãos.
Vivo contrariado pelo tempo,
e já me não detenho na tua imagem
que é visual, mas também acústica.
A tua voz vem até mim,
ainda que raramente, quando menos espero,
motivada por palavras que são tuas,
pois foi contigo
que as aprendi a dizer.
Foi há tanto, e só por viagens
de sangue gasto e inerme
é que os regressos se escrevem
na página que julgo ser.
Apressado, como o vento precipitando-se
sobre a destruição dos dias,
prometi lembrar-te tocando-te de leve
a igual espessura da sombra e da luz.
Tornou-se alta a irmã que já era alta
no muro onde a depositavas
com desvelos só teus.
Tudo isso foi antes de eu nascer.
Prefiro recordar-te feliz e jovem,
antes da família, do exílio,
da lenta combustão do mundo.
Nunca te disse, por exemplo,
e tarde se fez, como gostava
do lenço verde-azeitona
e dos braços erguidos,
sustendo o amor da tua vida,
esperando.
Tudo isto
é ficção, a imagem é uma ficção,
a fotografia escolhida,
a tua lembrança.